Sobre Snowglobe, de Fábio M. Barreto: entre ficções

Maurício Piccini
10 min readNov 1, 2022

Tenho pensado neste espaço (e em todo espaço de ‘crítica’ literária). Em um oceano de críticas gostei/não gostei, ainda faz sentido oferecer uma interpretação, ou ainda, possibilidades de interpretação que não sejam tiradas (da bunda) do nada?

As críticas de leitura de Snowglobe, por exemplo, seja na Amazon ou no Twitter ou em blogs de literatura… É um "filmão blockbuster", "os personagens são o ponto alto", "que delícia de ler", "com um jeitão de trama investigativa"… Essas críticas são recomendações de leitura. Ninguém quer falar sobre o que entendeu? Ninguém quer arriscar demonstrar que leu errado? Ou é tudo medo do monstro do spoiler?

Sobre Snowglobe, eu comentei:

Snowglobe trata da fragmentação da nossa experiência com o que chamamos de realidade e o desafio de ter empatia.

Agora explico.

O Livro

[…] o que combina melhor com Fábio M. Barreto do que essa ideia de bagunçar a ordem das coisas? (Prefácio escrito por Jana Bianchi para Snowglobe)

BARRETO, Fábio M. Snowglobe. Versão original digital por SOS Hollywood em 2019, disponibilizada na Amazon. Versão impressa publicada pela Avec Editora em 2021 (318 páginas no Kindle).

Capa

A capa de Snowglobe, criada por Johnny Bijos para as versões física e digital, tem vários elementos para se olhar, é diferente das capas que apresentam uma cena genérica, como aquelas que mostram uma floresta ou um outro elemento natural como se importasse para a história. Ao mesmo tempo, tem duas personagens, que não estão se agarrando ou interagindo diretamente. Tem elementos de ‘colagem’ (elementos desconexos reconstruídos para a capa), mas parece querer apresentar um ambiente único. Quero dizer, a praia e os prédios parecem fazer parte da mesma paisagem de litoral urbano, não como se houvesse uma cidade e uma praia distintos em duas partes diferentes do livro. A paisagem é, então, visivelmente construída, mas construída para que identificássemos como “real”.

Capa criada por Johnny Bijos para a versão física de Snowglobe. Quem quer pesquisar quais são esses edifícios e construções ali atrás?

Podemos ver na capa em quatro partes: no topo, a imagem da personagem àcima, olhos verdes, cabelos avermelhados; abaixo um domo que pode ser estrelado, um firmamento ou o vidro do "globo de neve/snowglobe", abaixo do título uma cidade construída com prédios conhecidos mas em novas posições; uma praia de areia, com a água de um lado, vegatação ao fundo e outra personagem de costas olhando para a paisagem, para a cidade ou para a outra personagem lá em cima. Estariam se vendo?

Se eu curtisse simbolismo, a personagem na praia está caminhando. O corpo curvado pode indicar já cansaço. A praia em si indica solidão, isolamento. A vegetação é a natureza selvagem entre ela e a cidade de prédios longos e construções irregulares, tortuosas, difíceis… Um futuro difícil. Àcima do firmamento artificial, uma figura idealizada observa tudo, sabe de tudo ou controla tudo.

Por que isso é importante? Essa é nossa primeira impressão do livro — ou seria se encontrássemos o livro em uma livraria. Não sei quantos detalhes ficam visíveis na fotinho da Amazon. Mas parar para olhar o que os autores do livro pensam que interessa mostrar é sempre uma chave de interpretações.

Capítulos

Abrindo o livro, chama a atenção (a minha pelo menos, eu sei que vocês não se interessam com isso) a distribuição de capítulos com o nome "Intratempus". O primeiro serve de primeiro capítulo, antes mesmo do título "Parte I". Os outros Intratempus se colocam logo antes das demais Partes exceto a Parte II. Não sei dizer se é proposital, mas minha necessidade de simetria bugou aí. Há um último Intratempus como capítulo final.

Esses Intratempus interferem na interpretação do livro? O nome intratempus parece ser construído do latim intra, dentro e tempus, tempo. Ou seja, dentro do tempo. Estranhamente, a expressão em latim se refere a estar "dentro do tempo correto" para determinada ação mas no contexto de ficção científica, parece estar situando um evento descontextualizado, sem sua referência temporal correta… faz sentido? Leiam e respondam por vocês.

Exemplo de Fragmentação — Sonho

O primeiro Intratempus se chama "Sonho".

No lugar do intervalo, Barreto coloca o leitor dentro do tempo. Esse movimento para dentro aparece ao longo do texto, puxando e fechando os acontecimentos em suas ilhas particulares a espera do estouro.

O sonho é a descrição do sentimento de não-pertencimento:

  • “memória antes do próprio tempo"
  • “sonho que não era dele”
  • “felicidade emprestada”
  • “mergulhar de cabeça no mar com um corpo de outra pessoa”

Ao mesmo tempo, temos a escolha por conjugações no pretérito imperfeito:

  • “sonhava um sonho”
  • “sentia seus silêncios”
  • “a família fragmentada reencontrava a unidade”

Mesmo quando utiliza o pretérito perfeito, o narrador o faz com o advérbio “sempre”:

  • “Erick sempre esteve lá”

que não combina com o passado já terminado. O primeiro Intratempus é uma bolha de tempo.

Exemplo de Fragmentação — Passageiro Anacrônico

Metalepse é um nome usado em muitas coisas diferentes. Mas, no caso de narratologia, é o nome dado ao movimento do narrador quando ele parte de um nível de narrativa para outra. Movimento vertical. O narrador onisciente passa para um narrador observador e daí para um narrador personagem. E pode então fazer o movimento contrário.

É o narrador professor? Narrador profeta? Ele é obviamente onisciente, mas não quer contar o que aconteceu/acontecerá ou o próprio narrador está fragmentado?

De todas as viagens da nossa vida, a volta para casa é a mais dolorida.
(…)
O metrô de superfície acelerava conforme as cores vívidas da infância de Erick mesclavam-se com a amargura alva das paredes dos laboratórios que o continham na vida adulta, como um filme em Super 8 exibido continuamente nas janelas do vagão.
(…)
Vermelho escarlate. Cor sólida. Piscante. Um alerta. O alerta.
(…)
Quem assiste televisão conhece a sensação. O participante do programa de auditório está vendado e precisa enfiar a mão dentro de uma caixa com algo nojento ou perigoso;…
(…)
O que sentir? Medo? Empolgação? Como se comportar? Correr em busca de abrigo? Sonhar com as estrelas? Improvisar um chapéu de papel alumínio? Uma mistura de tudo? (…)
(Referências Capítulo Passageiro Anacrônico)

Essa forma de metalepse ontológica vai se tornar necessária ao longo do livro para amarrar os diversos níveis da história. O narrador é a linha que costura os retalhos da vida de Erick e Becca nessa colcha com franjas de ficção científica. A metalepse também é própria para gerar o chamado Myse-en-abyme, ou, no caso da escrita, a narrativa dentro da narrativa dentro da narrativa… Uma história contada dentro de outra.

Voltando à capa: dá pra enxergar “metalepse” ali? As mudanças de nível? Quem enxerga o quê? Quem está consciente de em qual plano as coisas estão acontecendo?

Isso também fica em consonância com o descolamento das narrativas de Erick e Becca e o eventual "sequestro da narrativa" pela personagem da Becca, que, agora sob a lente teórica, parece inevitável.

Cada um na sua… bolha

A fragmentação do texto de Snowglobe nos leva então ao seu oposto: a criação de pequenas unidades ou ilhas de significado ou, no caso de Snowglobe, de globos de neve isolados. O tema do isolamento aparece em diversas fases da leitura.

Globo de Neve é central à experiência de leitura de SNOWGLOBE (dã? é óbvio.)

Estação espacial de Becca é exatamente uma bolha de ar, isolando seres humanos em um espaço vazio e inóspito.

Brasil (não o Brasil de hoje, mas) como exterior para Erick, um território do outro, ressaltando a distância que ele sente dos pais.

iReality, enquanto máquina para isolar as pessoas em pequenas bolhas de vida simulada, onde podem interagir sem interagir, ignorando o espaço onde estão e construindo uma interação com algo que não está lá.

Avó na cabeça como fragmento de memória que só existe para Erick, congelando a avó em uma memória interativa.

Reality Show como exemplo de simulacro de realidade com os quais as pessoas interagem pensando que aquelas pessoas estão sendo mais reais do que são na realidade.

Ilha da Fantasia, um espaço construído a partir da imaginação e superprotegido para servir de refúgio.

Laboratório virtual, espaço em que Erick fica preso sem noção de passagem do tempo exterior.

Como "história de viagem no tempo", o tempo é parte da narrativa. Mas começamos a ver isso um passo antes, na forma como o tempo é tratado na narrativa. Barreto fragmenta as descrições, isola parágrafos como ilhas, pula entre eventos que deveriam ser sequenciais. Tudo isso cria uma atmosfera fragmentada para o tempo da narrativa, tanto o tempo psicológico quanto o cronológico, tanto o tempo narrado quanto o tempo da narração.

Quem rompe a bolha?

O sonho era de outra pessoa, mas não pensou duas vezes em transformar cada vestígio daquele amor descoberto em algo só dele; como se sempre tivesse sido, e, dali para frente, sempre fosse, parte dele. (último parágrafo, Intratempus I)

Já argumentei sobre o papel da princesa em contos de fadas. O herói é um babaca. Ele só enxerga o próprio umbigo. A família dele está em perigo, os amigos morrem de fome todos os dias, mas ele não faz nada até ter o Chamado Para a Aventura. O chamado em si pode ser a ordem de um rei, o comando de um general, a ordem de um superior em uma empresa; seja o que for, o alguém precisa colocar o herói em movimento. Esse movimento o leva em direção a uma princesa. Não estou chamando a Becca de Princesa por ela ser mulher, mas por ela ter empatia.

Uso a palavra "princesa" em referência a um "rei" que pede que o herói salve sua filha. O comando é o rei, quem vai se beneficiar é a filha. O herói é só o meio para o objetivo ser alcançado.

O que acontece é que, no caminho, o herói se apaixona pela princesa. E daí? Daí que a princesa é a Empatia. Ela direciona o herói ao outro. A princesa é o primeiro "outro" com quem o herói se importa. E, como a princesa se importa com seu reino, com seus súditos, o herói vai precisar se importar com esses "outros outros" (!) também.

Propp meets Greimas.

Mas, em Snowglobe, Becca se importa E faz algo a respeito. A partir de sua bolha, Becca sente falta das pessoas. É ela quem nota que algo aconteceu. É ela quem vai atrás de desvendar a história por trás de tudo. E é ela mesma quem se importa com as pessoas que encontra no caminho.

A princesa salva a si mesma neste livro?, sim. E também salva um monte de outras pessoas.

Eventos x Fatos

Se Becca está preocupada com seus amigos, de forma absolutamente subjetiva e pessoal, a história de Erick está presa à pergunta que, para ele, é absolutamente objetiva: o que é real?

Isso é … interessante?

Vou tentar elaborar da seguinte forma: eventos e fatos são coisas diferentes. E Erick está tentando definir qual é qual. Evento é o que aconteceu, uma coincidência de ocorridos. Fato: é o testemunho de um evento, registros e relatos sobre o que aconteceu.

Erick se depara com a subjetivação do tempo e da História. A História em Snowglobe foi mudada com mentiras. A mentira é o Fato Histórico, apesar de o Evento correspondente ser muito diferente do que foi registrado e divulgado.

As questões com que Erick se depara são interligadas tanto no nível de suas memórias pessoais (e sua avó) quando no nível de visão de mundo (ou de mundos alternativos) com questões atuais, principalmente no papel da tecnologia para a construção da tal pós-verdade (não gosto dessa palavra, mas aqui ela cai muito bem).

Isso foi publicado em 2019, antes da enxurrada de mentiras pandêmicas. O pior que pensávamos era que os “terraplanistas” estavam chegando… pois é. Em 2019 alguém podia dizer que o plano de criar uma falsa História completa através da mídia seria absurda.

Em 2022, é o que está aí. Todo dia.

Comentários extras

Sobraram algumas questões sobre o livro, se vocês (quem eu estou enganando, tu, tu aí, única pessoa que lê essa resenha) tiverem respostas…

  1. Mundos de cópias das cópias… como funciona? Salvar uma cópia é salvar o mundo inteiro? Ou é só tentar de novo e salvar a si mesmo em outra linha paralela de realidade?
  2. No que eu chamei de metalepse ontológica, Barreto ensina a ler o próprio livro. Isso é tranquilo? É como ler um livro comentado? É uma promessa do que vai acontecer? Funciona quando as promessas enganam mais do que são cumpridas? Era o objetivo enganar o leitor?
  3. No meu canon da minha cabeça, a cada quebra de narrativa é uma linha de tempo (realidade alternativa) que foi atravessada… São versões da narrativa que deram errado e tivemos de mudar de universo para chegar em uma que deu certo. Faz sentido?

Por exemplo, ao final do capítulo “Tarde de outono”, um caminhão corta a cena “O caminhão chegou mais rápido que a decisão.” A sequência é quebrada por um “Intratempus” (Intratempus II: o Faxineiro), e a narrativa reinicia em outra linha narrativa, para abrir a Parte III do livro. Mais tarde, a personagem ainda se pergunta se teria morrido nesse acidente e o resto foi tudo um sonho.

Isso pode ser verdade, supondo a existência de diversas linhas narrativas… mas isso já é história para outra conversa.

Referências (para ler mais)

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