Narrativa em jogos digitais

O que é e para que serve?

Maurício Piccini
7 min readMay 28, 2018
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Resumo do resumo: Para quem não sabe o que é narrativa ou não estuda seu funcionamento em jogos digitais, basta dizer que “uma boa narrativa trata de dar boas dicas aos jogadores sobre o comportamento esperado deles a cada momento do jogo”. A partir da narrativa, o jogador pode deduzir qual estratégia deve seguir e, mais importante, como o ambiente e os demais jogadores irão responder a essa sua estratégia.

Mas o que é narrativa, afinal?

Para os leigos, jogadores ocasionais e ludologistas, a narrativa é a historinha que vem junto com os jogos. Essa historinha serve para enganar o jogador, dando ilusão de imersão.

Com ela, os jogadores fantasiam suas escolhas e são iludidos a ponto de acreditarem que possuem escolhas no jogo, quando, na verdade, as escolhas são pré-determinadas pelo autor ou pelos game designers. Mas, para quem estuda narrativa, essas definições não são suficientes. A começar por compreendermos a narrativa em dois momentos: fábula e trama (ou discurso e enunciação, fábula e mito, a depender do autor e do tradutor — meu favorito é Tomachevski). Fábula é o conjunto de motivos (imagens, personagens, referências e ações) que ocorrem em uma obra (historinha). Trama é a forma que esta historinha tomou, a ordem em que os fatos foram contados e o modo como os motivos são apresentados.A narrativa aparece na união desses dois momentos, é, portanto, um conjunto de motivos dispostos em uma forma específica. Assim, a primeira coisa que podemos propor a ser avaliado em estudos sérios sobre narrativa em jogos é: quando a narrativa ocorre? Ou seja, se a narrativa existe apenas em uma forma específica, é possível haver narrativa em hipertexto? Na forma de possibilidades? Ou seria a narrativa apenas o produto final de uma partida de jogo? A explicação sobre como funciona a narrativa em jogos passa, portanto, pela compreensão de dois momentos: a historinha inicial e a trama montada.

A fábula

Regra 1: ao jogador devem ser dadas informações sobre como proceder.

Se não forem entregues pistas (trechos, relatos sobre o que já ocorreu ou pode ocorrer) da história ao jogador, a história é inventada apenas pelo jogador; não havendo, portanto, interatividade. Essas informações são consideradas as “regras do jogo” e é por isso que sua importância reside no fato de poderem descrever o que se espera do jogador (e das personagens que representa) durante a partida.

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Essas regras são normalmente percebidas como A NARRATIVA (primeira e única) do jogo, porque são apresentadas em forma de texto (oral ou escrito) e porque são formalizadas através de elementos reconhecidos pelo público como fundamentais à narrativa (personagens e objetivos). O mais interessante é que a parte “escrita” da narrativa é a parte que as pessoas pulam. Quero dizer, ninguém quer parar e ler/ouvir/assistir as histórias das personagens contadas. Querem apenas jogar. Por isso, talvez, ninguém saiba que estão tratando com narrativas.

(Mario e sua explicação sobre o que fazer com caixas)

(Na Literatura, o papel de instruir o Herói é responsabilidade do Rei)

(Isso significa que o Game Designer se acha “o rei”?)

Regra 2: ao jogador nunca é contada a história completa.

Se for entregue a história completa, o jogador será apenas um ator teatral cumprindo a personagem, não um jogador. O jogador precisa fazer escolhas para completar o conteúdo. Essas escolhas não devem ser triviais, mas depender das habilidades do jogador e de sua capacidade de compreender a evolução das ações.

Ou seja, mesmo quando a sequência de ações é apresentada incompleta para ser deduzida pelo jogador, não deve haver apenas uma solução. Se houver, é só um quebra-cabeças e recaímos em uma redução ao caso do ator repetindo um papel. Sim, antes que os atores venham reclamar, não estou ridicularizando a profissão. E, sim, eu sei que atores podem alterar os roteiros interpretando de forma diferente a partir de textos exatamente iguais. Mas (!), no caso de jogos, os jogadores não possuem uma variedade formas de comunicar a fábula tão grande quanto um ator real.

Dessa forma, os jogadores ficam presos ao vocabulário permitido pelo design do jogo. No sudoku, o jogador pode seguir uma sequência de ações variada. Pode até mesmo analisar sua estratégia de diversos ângulos antes de decidir quais ações seriam as possíveis, depois as válidas, depois as úteis… Até definir qual ação tomar — qual número escrever. Ninguém compreende isso como narrativa, primeiro, porque o resultado final correto é igual e independente das sequência de ações tomadas; segundo, porque um caminho que leve a uma configuração final diferente é entendido como errado; e terceiro, porque não há palavras ou outros símbolos registrando as ações — os caminhos percorridos — apenas números indicando o estado em que o tabuleiro se encontra.

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A trama

Regra 3: o jogador deve escolher suas ações a partir de um conjunto de opções implícito na “historinha” ou explícito nas instruções do jogo.

Isso deve ser mais um corolário das regras anteriores, mas é melhor deixar claro.

O jogador é um bicho estranho, ele acha que tem domínio do jogo, mas ao mesmo tempo precisa de alguém que lhe diga o que fazer. Quer ter todas as alternativas, mas precisa de um empurrão na direção “certa”. No jeito mais simples de dizer: o jogador precisa saber quais são os próximos passos da história, mas quer decidir por si quais passos dar de cada vez.

O melhor jeito de fazer isso é apresentar a sequência de ações de forma “lógica”. Ou seja, a decisão precisa ser consistente e coerente. É preciso que estejam claras as regras, para que o jogador possa prever seu próprio caminho através de regras de produção (SE… ENTÃO…). Esses encaixes podem ser meramente formais (a rotação das peças em Tetris ou os números de um Sudoku) ou cobertos (acobertados?) de simbolismo (se fogo queima, cair no fogo mata minha personagem; se água afoga, cair na água mata minha personagem).Eu sei, e como fazer para enxergar narrativas em jogos sem o nível simbólico? O nível simbólico sempre existe, ele só não está separado do resto do jogo. Em um jogo de xadrez, as peças são as peças mesmo sem o nome de “bispo”, “cavalo” e “torre”. O problema é não enxergar um nível simbólico útil a ponto de se poder usá-lo em uma análise. Nesse caso, basta ignorar os símbolos ou reinterpretá-los.

Regra 4: por fim, o nível simbólico deve mimetizar o nível lógico das regras de produção do jogo.

Também um corolário (agora, da terceira regra), o nível simbólico só é útil se ele não atrapalhar a análise do nível lógico. No xadrez, pensar que aquilo é um cavalo atrapalha e, por isso, todos nós ignoramos esse nível — exceto, talvez, jogando Battlechess.

Regras de produção

As regras de produção são essenciais para o andamento dos jogos, não só porque elas permitem que o jogo avance, mas porque permitem que o jogo avance de forma atraente para o jogador. Em Literatura, a curva de evolução da narrativa é o que se chama “tensão narrativa”. Em jogos, essa curva permite que o jogador avance em graus de dificuldade cada vez mais difíceis.

Precisa se erguer de forma a ser difícil, para que ele não se entedie, mas não tanto a ponto de impedir a progressão do jogador. E, em um jogo, isso é ainda mais difícil de controlar do que em um livro, pois os jogadores podem seguir a evolução da história de formas muito mais variadas do que o fazem os leitores de livros.

Curva de “fluxo” (in-game experience)

A teoria do fluxo, de Csikszentmihalyi — o quê!? Csikszentmihalyi — ressalta bem essa questão e a resume de forma extremamente simples. O jogador quer sentir-se interessado pelo jogo, mas não ansioso demais; e quer sentir que tem controle do jogo, mas não quer se sentir entediado demais. Onde ficariam os jogos tabelados por “habilidade necessária” x “estresse”, segundo artigo de Ernest Adams.

Curva de aprendizado

A curva de “fluxo” do nosso amigo C. (procure lá em cima, eu não digito de novo) é semelhante à curva de aprendizado.

Faço a comparação caso os leitores estejam mais acostumados a aulas ou a jogos educativos do que a jogos de entretenimento. A comparação é válida, aliás, mesmo sem que estejamos tratando de ensino tradicional ou mesmo esse tal “ensino virtual modernérrimo”, pois todos os jogos ensinam. Na maioria das vezes, aprendemos só as regras do jogo. Mesmo assim, aprendemos.(Imagem da “Zona de desenvolvimento proximal”, teoria sobre aprendizagem a partir de Vigotskij — sim, dia dos nomes difíceis, esperem até eu resolver falar de todos os Formalistas Russos!)

Regra 1: ao jogador devem ser dadas informações sobre como proceder.
Regra 2: ao jogador nunca é contada a história completa.
Regra 3: o jogador deve escolher suas ações a partir de um conjunto de opções implícito na “historinha” ou explícito nas instruções do jogo.
Regra 4: por fim, o nível simbólico deve mimetizar o nível lógico das regras de produção do jogo.

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