Não conte com a sorte, tem ciência aí!
De onde vem a Gamificação? E para onde vai?
É de praxe que a gamificação seja definida como “uso de elementos de jogos em contexto não-jogo” e outras variações[1]. Mas o que são esses “elementos de jogos”?
1 Que vem do jogo
Ainda hoje, três termos competem hoje em significado. Ludificação, por exemplo. Embora ludi/ludus indique jogo, a palavra nos remete ao “lúdico”, trazendo a conotação de diversão em vez do videogame em “game”-ficação. Temos ainda o “gamblefication”, onde “gamble” é jogo de azar. O termo critica o fato de que jogos hoje seriam criados para criar vício e gratificação imediata, como em jogos de cassino.
Se pensarmos na reutilização de elementos de jogos em outros contextos, podemos entender exemplos importantes para compreender o processo da gamificação.
O primeiro deles é um jogo religioso.
Gerhard Tersteegen, em 1769, criou a “loteria piedosa”. Um jogo de cartas em que cada lâmina trazia um pensamento ou uma prece em favor do jogador-devoto. Não muito diferente da prática de abrir aleatoriamente um Salmo para ler pela manhã ou mesmo de sortear cartas do Tarot, o baralho de Tersteegen transformava o ato de devoção, por vezes tedioso e repetitivo, através da curiosidade e da surpresa. Ou, como ele propagandeava, era uma loteria “impossível de perder”.
2 Regras x Aleatoriedade
A aleatoriedade parece ser um elemento importante no que consideramos “jogo”. Se o jogo não tem algum elemento que misture as chances entre os jogadores, se parece menos com um jogo para a maioria de nós e mais com algo mecânico e predeterminado.
Há, por exemplo, um sistema para criação aleatória de música atribuído a Mozart, embora sem muita certeza histórica. No entanto, sabemos com certeza das publicações de Carl Philipp Emanuel Bach, em 1758, e de Maximilian Stadler, em 1780, nas quais instruem sobre como criar música através de regras lógicas e o uso de dados!
Se pessoas como Mozart tivessem mesmo esse tipo de “jogo” para entreter seus pares, imagino que quisesse mostrar como ele era bom em inventar coisas do nada; meio como show de comédia em que os comediantes sorteiam palavras com a ajuda da plateia para daí inventarem as piadas. Virtuosismo. Ainda assim, o interessante é que as pessoas entendiam isso como “jogo”.
3 Interessante e aplicável
Eu sei o que vocês pensaram. Vocês pensaram:
“se eu aprender essas regras da música, eu posso APRENDER a criar músicas tão bem quando eles?”
A resposta é: estamos chegando lá.
Paralelamente aos jogos musicais, lá pelo final dos anos 1700 e início dos 1800, alguém se deu conta de que aquilo que era chamado de “magia” era muito próxima ao que começávamos a chamar de “ciência”. O século 1700 parece ser quando essa mudança de pensamento — essa desmistificação do mundo — tomou conta da Europa, não é mesmo?, mas esse é outro assunto. Livros sobre “Magia Natural” ou “Magia da Natureza” nasceram trazendo brincadeiras matemáticas e exercícios experimentais de física e química muito simples que vieram a “desmistificar” as artes mágicas. o que era criado, na verdade, era a gamificação do ensino. Matemática, Física, Química ensinados de forma simples e que podiam ser experimentados durante brincadeiras.
Esse tipo de livro existe até hoje. São promessas de que a criança pode aprender truques de mágicas e outras coisas divertidas quando, na verdade, está aprendendo conteúdo importante. Eu chamo de enganação. A língua inglesa tem o termo “bait-and-switch”, fisgar e trocar; significa atrair a pessoa com uma promessa e mudar essa promessa em seguida. “Venha se divertir… te enganei! Agora vou te ensinar movimento retilíneo uniforme.”
A gamificação do ensino tem seus desafios próprios.
4 Não conte com a sorte, tem ciência aí
Mark Twain, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, um dos mais conhecidos autores de língua inglesa, criou para as filhas um jogo em seu quintal (estou supondo que fosse o quintal, poderia ser um bosque próximo a sua casa). Twain marcou o chão com estacas, desenhando um caminho não muito diferente do caminho de jogos como Ludo ou Banco Imobiliário. O caminho era numerado de acordo com os anos em que certo evento histórico importante — e que as filhas de Twain deveriam decorar — havia ocorrido. Parece apenas um jogo de memorização, mas é um exemplo perfeito para o que uma gamificação de aprendizado deveria fazer. Perfeito por dois pontos essenciais:
1 O conhecimento para vencer o jogo era exatamente o conhecimento que precisava ser aprendido[2]
2 O conhecimento é mapeado nos elementos do jogo para ser facilmente recuperado pelo jogador-aluno
Conforme o próprio Mark Twain explicou, ele não apenas se lembrava das datas para Henrique III ou Eduardo I, mas da pereira em seu quintal com as frutas penduradas próximas ao caminho que seu jogo percorria. A memória da data, tão distante e vazia, era associada ao quintal da casa, às brincadeiras divertidas, ao cheiro das árvores, ao dia a dia da família.
Conhecimento
Conhecimento correto: muitos jogos servem apenas de fachada para o verdadeiro aprendizado e, desse modo, se colocam no caminho, atrapalhando o acesso do aluno ao conteúdo a ser aprendido. De nada vale o jogo que faz o aluno aprender a somar e subtrair pontos de ataque e defesa com diferentes armas para que sua personagem sobreviva se, no fim das contas, o que o jogador deveria estar aprendendo é a geografia do campo de batalha.
Conhecimento acessível:
- A memória de quem joga o jogo de Mark Twain é acionada por espaçamentos e temporalização (conceitos de Jacques Derrida).
- Jogos de sorte trabalham a alea, elemento de jogo descrito por Roger Caillois em Os Jogos e os Homens, em 1958.
- Rezas e bênçãos trabalham o sentido épico através do jogo. O jogador sente que faz parte de algo maior que ele mesmo, que pode mais, que o que ele faz não é só diversão, mas algo que fará bem ao mundo inteiro. O sentido épico é descrito por Yu-Kai Chou em seu modelo “Octalysis” para gamificação.
- O sistema de recompensa dos jogos, já sabemos, dialoga diretamente com nosso cérebro, criando e remodelando laços emocionais e processos cognitivos.
Mark Twain, Maximilian Stadler, Gerhard Tersteegen, todos eles e todos os que criaram outros jogos contemporâneos talvez tenham feito o que fizeram por muita dedicação e um pouco de sorte.
Mas, hoje, há ciência o bastante para podermos obter resultados mais rápidos, mais coerentes e mais duradouros do que eles.
[1]: Alguns exemplos foram retirados de FUCHS, Mathias. Predigital precursors of gamification. Disponível em: https://meson.press/wp-content/uploads/2015/03/9783957960016-rethinking-gamification.pdf. Há uma versão traduzida para o Português do texto de Fuchs no livro “Gamificação em Debate”, organizado por Santaella, Nesteriuk e Fava.
[2]: James Paul Gee tem um livro simples e bom sobre isso: What Video Games Have to Teach Us about Learning and Literacy.