Publicado originalmente em Faísca Mafagafo, Temporada 4, Episódio 2

Alienação no trabalho

Era o último dia de Antônio como peça daquela indústria vital.

Antônio ligou a caixa de voz à fonte de energia com um conector quatro-cinco-sete adaptado. Não era padrão, mas só precisava funcionar por alguns instantes. O autômato ainda não tinha olhos propriamente ditos, com isso Antônio não se importava. O autômato podia enxergar, mas, se alguém o olhasse, veria apenas um amontoado de circuitos grandes e engrenagens pequenas.

Os receptores visuais e auditivos haviam sido instalados na esteira anterior. A caixa de voz deveria ser encaixada sob a capa de pele sintética do pescoço apenas após o posicionamento correto das próteses de olhos e cabelos, para ter a mandíbula concluída na esteira seguinte. As próteses de olhos e cabelos eram das poucas peças que precisavam de um ser humano para a instalação — e a razão de Antônio ainda ter um emprego até aquele dia. Apesar de cores e texturas serem encomendadas pelos futuros donos, havia ainda espaço para o improviso.

A indústria decidiu que havia algo na percepção de faces feita pelo cérebro humano que só podia ser identificada por outro cérebro humano. Não era questão de evitar estrabismo ou hipertropia, humanos também podem ser vesgos. O trabalho de Antônio era implantar olhos, cabelos e nariz e ajustá-los até que seu próprio cérebro reconhecesse naquelas peças um rosto.

Antônio descobriu, no entanto, que seu trabalho era muito mais interessante se a caixa de voz fosse instalada primeiro.

Olá, você é meu humano designado?, reverberou a caixa de voz.

— Hum, sim. Pode me chamar de Antônio.

Olá, Antônio. Tudo bem com o senhor?

— Tudo, tudo. Hoje é meu último dia aqui, sabe?

O que é dia?

No início, quando Antônio começou a trabalhar naquela linha de montagem, os autômatos vinham sem programação alguma. Cabia a Antônio instalar o código operacional e gravar as primeiras palavras-chave necessárias para operação: “ligar, desligar, andar, correr, siga, pare!”. Nos últimos anos, as redes neurais adaptativas passaram a ser manufaturadas fora do planeta e entregues aqui já pré-programadas para os dois sistemas autorizados de autômato padrão: o modelo caseiro e o modelo industrial. O trabalho ficou mais simples, mas a pré-programação não deixava de ser peculiar.

Olá, você é minha pessoa delegada?, era um modelo caseiro.

— Sim, sou eu.

Olá, pessoa. Qual sua designação?

— Eu sou Antônio, ele/dele, variação tu na terceira do singular, engajamento social fraternal. Trabalho aqui há quatro décadas e hoje finalmente vou pra casa.

Confirmado… Legal te conhecer, amigo Antônio. E quem sou eu?

Antônio não sabia como os verdadeiros donos gostariam de seus autômatos configurados, então — na maioria das vezes — reiniciava a memória.

— Tchau, meu irmão. Boa viagem.

Até a próxima, meu amigo.

— Não tem próxima. Tu vai, eu fico.

Vou para onde?

Bugs eram esperados, mas raros. Era como acertar na loteria… ou Antônio saberia caso tivesse ganhado na loteria alguma vez.

Olá. Onde estou?

— Hum… Tu tá na esteira dezesseis-mais-um.

O que é esteira?

Antônio, na maioria das vezes, não tinha respostas que pudessem satisfazer os autômatos. Ele tentou muitas variações.

— Tu tá no planeta Terra. Numa indústria de autômatos que vão trabalhar por todas as partes do Sistema Solar.

O que é trabalhar?

As dúvidas dos autômatos não eram regulares. Não havia um padrão. Cada autômato tinha prioridades diferentes para suas dúvidas. Com o tempo, Antônio veio a atribuir uma certa personalidade a essas prioridades. Se o autômato parecia priorizar emoções, Antônio podia colocar olhos mais calorosos, mais abertos e levemente elevados.

Tu gosta de trabalhar aqui?

— Eu não acho que ninguém “gosta” de trabalhar, mas eu não reclamo, não. Hoje é meu último dia. Depois vou pra casa.

Se o autômato desse muita prioridade ao que Antônio não sabia responder, receberia um cabelo ralo e costurado de maneira a nunca se alinhar.

E para onde eu vou?

— Não sei, mas não te invejo. — Mentira, invejava sim.

O que é inveja?

Antônio largou a microparafusadeira e removeu os óculos de proteção. Ficou sentado em frente ao autômato que, naquela etapa, estirado sobre a esteira, parecia dormir paciente aos olhos de um cuidador.

Antônio se levantou e apertou o botão grande e vermelho que fez soar a sirene de intervalo, disparando o cronômetro sobre a porta: cinco minutos, quatro minutos e cinquenta e nove…

Antônio voltou com um café quente nas mãos.

— Sabe, às vezes parece que vocês que nos montam. Essas perguntas todas. Eu nunca ia pensar nesse monte de coisa se vocês não me enchessem de perguntas. No fim das contas, a gente não cria autômatos mais humanos, né? É a interação com os autômatos que nos muda, que faz com que a gente seja humanos melhores. — Antônio tomou um grande gole de café e largou a caneca na mesa ao lado da esteira. A sirene soou o fim do intervalo, ato contínuo, e Antônio debruçou-se novamente sobre o autômato. — Esse foi meu último intervalo de trabalho, sabia?

O que é trabalho?

— Trabalho, hum… significa que tu é propriedade de alguém, que alguém te diz o que fazer e quando parar. Tu vai ver, irmão.

Tu não vai mais parar de trabalhar?

— Isso. Quer dizer, não. Paro de trabalhar, pra sempre, daqui a meia hora. Daí deu pra mim.

Tu já é um humano pronto, então? Não precisa de mais perguntas?

Antônio terminou os olhos do autômato. Eram de um castanho-escuro como os seus. Pensou em como aqueles olhos veriam estrelas e planetas que ele nunca imaginaria e em como nunca mais veria aqueles olhos também. Desconectou a fonte de energia, desligou a caixa de voz.

Num último improviso, desmontou o mais rápido que pôde os olhos castanho-escuros recém-instalados e os guardou no bolso, substituindo-os por um par novo e desalinhado. Deu adeus à máquina, à esteira, à fábrica. Retornou para casa com os olhos apertados na palma da mão, com medo de que fosse descoberto ou roubado.

Instalou os olhos em um cabideiro ao lado da porta.

— É assim, irmão, acabou.

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